Conto - Um Anjo...

 

Destinos que se cruzam

 

Descia distraído a rua, enquanto aproveitava o restante de meu horário de almoço, olhando vitrines, e as moças bonitas, em meio ao vozerio dos passantes, os pregões em alta voz, a frenética vida urbana, todos tinham pressa, menos eu.

Pedi um café algumas quadras abaixo, e enquanto brigava com o açucareiro entupido, fui surpreendido com um cheiro novo, que quebrava a rotina, que apagou o aroma de meu café, e se impôs, anunciando a chegada dela, esqueci minha infusão e me pus a buscar de onde vinha aquele olor tão agradável e sofisticado, que remetia a uma mulher de bom gosto.

Olhei para todos os lados, quando notei já a uma certa distância, uma silhueta curvilínea e bem acinturada como dois “S” opostos, como uma cuia de chimarrão, os mais belos cabelos negros flanavam em contradança com a brisa fresca, que trazia às minhas narinas, tão delicioso bálsamo.

Fiquei por um instante em contemplação, admirando aqueles formosos contornos, que parecendo flutuar iam se afastando de mim, me deixando para trás, sem nem ao menos suspeitar de minha existência.

 Os minutos que me restavam de liberdade, se esvaíram com malvadez, me obrigando a voltar ao labor. Corri para o meu birô ainda contemplativo, pensando em toda a beleza, que passara diante de mim.

                                             fonte da imagem: cici.com

Acordei naquela manhã, com toda a sorte de trabalhos acumulados, tentando pô-los em dia, resolvi começar pela área externa, indo visitar uma casa para negócio, no outro lado da cidade. Havia deixado o carro da empresa, num estacionamento fechado, que fica no outro extremo da rua, corri até o elevador para descer, caminhei até o hall do edifício, um velho prédio comercial onde ficava o escritório de nossa imobiliária, que ainda era modesta, mas já havíamos feito algumas boas vendas. Me dirigi até a portaria, onde seu Mariano o porteiro, um senhor quarentão, sempre deixava escapar um olhar cobiçoso e meio envergonhado em minha direção:
- Bom dia dona Virgínia! ­­­­­­­­­— Me saudou

- Bom dia seu Mariano, quando cheguei de manhã, ainda estava o seu colega da noite!

E fui saindo, pois a cada dia o homem disfarça pior o apetite em seu olhar. Desci os três degraus na entrada principal do prédio e já saí na movimentada rua central, cheia de vida. Notei, um homem rústico que contemplativo, segurava uma xícara branca, bonito de um jeito rude, com barba cerrada e jaqueta de couro. Me apressei em subir a rua, mas o vento teimava em me segurar me obrigando a andar mais devagar, acho que ele nem percebeu minha passagem, segui em frente cheguei ao fim da via onde estava o carro, e fui cuidar de meus afazeres.

No dia seguinte voltei à delegacia, pensando naquele anjo, que como um tolo, deixei se afastar, sem ao menos tentar falar-lhe. Na esperança que ela passasse novamente na minha rua, no mesmo horário do dia anterior, combinei com os colegas, que faria o intervalo na mesma hora, esperançoso, de que mais uma vez a sorte me sorriria, e quem sabe novamente meus olhos e minhas narinas seriam afagados pela presença, daquela moça que desde ontem assenhorou meus pensamentos.

Almocei, e corri para a cafeteria, desejoso em vê-la, tenso pela expectativa pois não conseguia parar de pensar, em seus cabelos pretos, e sua pele sassafrás, que cruzara meu caminho, de forma tão abrupta, tão repentina, mas ao mesmo tempo tão graciosa. Esperei, com o coração taquicárdico, porém infelizmente o tempo com sua tirania irredutível, foi mais forte que meu querer, e mais uma vez tive que voltar ao trabalho.

Como disse que faria, ontem visitei a casa a ser posta à venda, percebi que apesar de ser um imóvel bastante sólido e antigo, estava necessitando, de uma limpeza, e talvez uma pintura para torna-la mais atraente, aos possíveis compradores, liguei para a equipe de manutenção, pedindo que cuidassem disso. Naquele dia estava tão atarefada com os assuntos internos, que nem pude sair para almoçar, pedi um lanche, e comi ali mesmo, no escritório. O dia estava passando rápido, devido a correria, e eu já pensava no meu lar, a compensação após um dia agitado. Às 19 horas todos no escritório já haviam saído para suas casas, e resolvi encerrar a jornada, baixei a tela de meu laptop, o guardei na bolsa, levantei e me dirigi até a copa, para um último café, passei na toalete, para assear o rosto, apaguei as luzes e saí, levei o automóvel da empresa para casa, pois na manhã seguinte, iria mostrar um apartamento a um possível comprador, o que faria antes de me dirigir para o escritório.

Cheguei em casa, tomei uma caprichada ducha, e fui para cozinha, cuidar do que comer, a liberdade de se viver só tinha suas vantagens, mas as vezes me sentia incompleta, eu já estava me aproximando dos quarenta anos e ainda não era mãe, muito em breve, não seria mais possível realizar esse sonho. Meu jantar foi um simples e bem feito omelete, um bife de contrafilé acebolado, salada verde e uma taça de vinho tinto. A refeição apesar do pouco luxo, estava deliciosa, porém faltava algo, outra taça e outro prato sobre a mesa talvez. Me alimentei, com a mente em devaneios causados pelo vinho, associado a inquietação que sentia e as vezes doía no peito. Escovei os dentes e deitei, tentei ler um pouco, mas o fermentado gaúcho me forçou a adormecer...

Acordei cedo para me preparar para uma visita, que faria nesta data, uma sexta-feira de outubro. Como fiz plantão no domingo passado, tirei folga hoje, para visitar, uma vivenda, com a intenção de adquirir. Desde que minha esposa faleceu de forma trágica, minha casa que já foi um lar feliz, hoje é apenas, uma fonte de esmorecimento, tristeza. Meu filho Cristiano foi o primeiro a ir embora, ano passado, quando completou 23 anos, um ano após o fatídico dia, em que um pária, ceifou a vida de minha amada Mariana, uma policial militar dedicada a comunidade, sem nenhuma mácula em seus dez anos de profissão. Eu não tinha mais vontade de cuidar de um quintal vazio, e das rosas tristes, que ainda teimavam em desabrochar, sem os olhos azuis, que as admirava e cuidava com carinho.

Após um contemplativo desjejum, saí para a visita agendada, a corretora me deixou uma mensagem no smartphone, avisando que estava quase chegando e me esperaria.

Me identifiquei na portaria, deixei o auto no estacionamento rotativo, e segui a pé por uma rua local até o número 701. Primeira casa da rua sete, numa esquina sombreada por uma timbaúva florida. Bati na porta e fui atendido por uma linda dama de melenas negras, e olhos igualmente morenos com um brilho úmido e aquerenciador. Indaguei:

- Senhora Virgínia Panthera?

- Senhorita!  –– Enfatizou-me.

Me convidou a entrar e começou e mostrar-me o, germinado. Cada pequeno bloco era composto por dois lares, tendo cada, um pequeno quintal privado na saída lateral e fundos formando um L, na frente ficava a vaga para dois veículos. No interior da casa haviam dois dormitórios, um banheiro social, uma sala, cozinha, e lavanderia integradas, era pequena, mas bem construída e me daria novos ares, para tentar recomeçar a viver. 

Ao entrar percebi, que o ar estava atomizado, por um aroma rememorador, que me levou de volta a dias atrás, quando pulsante, meu coração quase me levou ao Eden, mas a surpresa ou a timidez covarde, me congelou as ações. Contudo o universo em ciranda, conspirou ao meu favor, me reservando, uma nova “segunda-feira”, outra chance, de cruzar o portal, àquela rutilante alma.

Depois de uma relaxante noite de sono, com o auxílio de uma taça de vinho, acordei cedo, com a Vênus ainda nos dando bom dia, naquela fresca manhã primaveril, liguei o chuveiro para lavar a preguiça, e terminei de despertar, com um aromático e saboroso arábica. Pus um vestido godê branco, com uma estampa floral, em amarelo e azul royal, e sandálias de salto baixo, e para coroar, aspergi algumas gotas de Angel. Entrei no elevador que me descendeu ao subsolo, embarquei no automóvel da empresa e saí. Cheguei ao pequeno e aconchegante condomínio, antes do talvez futuro cliente, dei minhas credencias de corretora na portaria, e me dirigi até o imóvel, abri levemente as janelas para dar uma arejada e acendi as luzes. Ia sentando num mochinho em frente a uma bancada que divide a cozinha da sala estar-jantar, quando o interfone tocou, atendi:

- Bom dia dona Virgínia, o senhor Cristiano a aguarda na portaria!

- Podes manda-lo entrar.

Menos de cinco minutos se passaram, quando o silêncio, de minhas conjecturas foi trocado pelas batidas na porta, tentei demostrar calma, e o recebi de forma cortês, abri a porta fingindo surpresa, e que não havia feito questão de atender pessoalmente, aquele rude agente da lei. Ele esteve em nosso escritório semana passada, e expos sua intenção de trocar de imóvel, pois havia se tornado viúvo e seu lar se tornara triste, eu o vi sendo atendido pelo meu colega, e lembrei que o trombara no centro, num pequeno cofee bar, pedi ao colega que me passasse aquela venda, prometendo parte da comissão, se o contrato se firmasse. Quando a porta se descerrou, aquela rude e tímida figura masculina enfim, pôs-se diante de mim. O convidei a entrar, e de forma discreta, sinalizei meu estado civil, negociamos, marcamos alguns jantares de “negócios”, más ao fim perdi a venda, pois Cris resolveu alugar sua casa, e mudou-se para minha residência, e para minha vida. Tive que colaborar proativamente, pois o rapaz era tímido, mas revelou-se um homem de verdade, cavalheiro, meu cúmplice, a outra metade do nosso amor.


Redação: Rodrigo Leal


                                            Fonte da imagem: cici.com

                                          

Dedicado a uma morena que talvez exista em meus pensamentos, ou quem sabe em meus mais loucos devaneios.

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